11.jpg12.jpg13.jpg14.jpg15.jpg16.jpg17.jpg18.jpg19.jpg20.jpg21.jpg22.jpg23.jpg24.jpg25.jpg26.jpg

A alma na pedra

A alma na pedra - s

 

Frases das vítimas número um.  Não estou sozinha na história.

Tínhamos conhecimento de quinhentas pessoas, hoje sabemos que chegam a mil. E nenhuma delas recebeu uma visita dos poderosos para que pudessem mostrar a realidade, nua e crua. Sei de quatro pessoas, dois casais, que moraram por meses em uma casa que nem porta tinha. Nem gás, nem aquecimento. Sei que dormiam no chão, que esquentaram a água para o banho (feito em bacia de plástico) no fogão. Sei de uma família que teve um dos filhos com problemas na escola, e entra na história Santa Luigina que socorreu a família, porque a criança dormia no chão. A mãe colocou o fogão no banheiro, porque não tinha lugar no apartamento para dormir e fazer comida. Sei de famílias que fizeram empréstimos imensos para poderem pagar os débitos adquiridos com o apoio dos famosos projetos. Empréstimos de cinco a seis mil Euros. Se por acaso não conseguirem pagar, se forem obrigados a voltar, como será possível o pagamento desse dinheiro com o valor da nossa moeda brasileira? E por que nunca, nunca mesmo, alguns desses realizadores de projetos vieram ter informações sobre como anda nossa adaptação na ‘pátria mãe’; se sentimos fome ou frio?  Quantos dos que vieram com esposa e filhos passaram frio? Ninguém se interessou. Em nome da lei, porque, como já disse: se não existem vítimas, não existem responsáveis. Ou culpados.

Como compreender uma sobrevivência tão contraditória ao que se esperava? Como entender os equívocos contínuos que nos levam à desilusão e ao desengano? Queria que as espirais de esperança que lentamente sobem ao céu se abrissem e mostrassem uma luz. Não de resignação. Não quero que esse seja o meu sol, porque os raios caminham pelas mãos como falso fogo. Não quero o caminho de uma decadência prevista pelo engano. Deve existir ainda o milagre de iniciar um vôo quando tudo parece imóvel. E a responsabilidade dessa certeza é minha, porque continuo na mesma música, nas mesmas notas, como um compositor obstinado que espera, num pequeno sinal, a ressurreição de uma sinfonia. Ou de vida. Ou de retorno.  Ainda que a verdade esteja sempre na parte que falta ou no incompleto. O último canto é sempre daquele que vê e ouve de perto o silêncio.

 

Dois meses de silêncio

 

A alma que esta terra me deu para beber me deixa tonta e não mata a minha sede.

Fim de fevereiro e parte do mês de março foi de desesperança e desespero: meu filho foi convocado para o serviço militar.  Na Prefeitura daqui disseram: nunca tivemos um brasileiro aqui e não sabíamos de nenhuma lei de acordo entre Brasil e Itália.  (Lei n° 924, de 04/08/1960). Tendo meu filho os documentos de liberação do serviço militar no Brasil, os documentos entregues aqui e carimbados pelo consulado.

Por que não funcionou? Tivemos de buscar provas e mais documentos, e mais viagens ao Consulado em Milão, e mais despesas. Mais a insegurança. Foram dias e noites de ansiedade, sem contar que os novos gastos não estavam previstos. Sem palavras para descrever. Nenhuma dor foi tão amarga e não vou descrevê-la. Porque a mágoa e a dor, acumuladas por meses, transformou-se em raiva, e foi no grito que consegui que fizessem a documentação. Ameaça por ameaça. A mim não interessa se aqui todo filho de sexo masculino pode ser chamado até os 27 anos de idade, interessa apenas que nos fizeram apresentar documentação de liberação do Serviço Militar e que aqui mesmo, com tradução, não sabem ler ou são incompetentes.

No grito e na ameaça, como ‘eles’ fazem, a gente consegue. Com gente ruim não vale nada ser bonzinho, nem educado. E as mesmas palavras que escrevi acima, do grito e ameaça, me foram ensinadas depois por uma amiga daqui: não seja boa, grite e exija. Assim se consegue. E conseguimos. Talvez mais por fé em Deus que pelo grito, mas conseguimos.

Assim passaram os dias. A surpresa maior ainda estava por vir: fui até a Regione saber o porquê das agências, o porquê de trazerem jovens, o porquê desses projetos... Eles não sabiam nada, não é coisa deles. Mas e o carimbo da Regione nos documentos? Ninguém sabe dizer, menos ainda explicar por que fomos enrolados, ou por quem, pois, nesse meio tempo, algumas pessoas denunciaram agências, algumas pessoas tiveram a coragem de abrir a boca e comprovar algumas coisas. Ao menos o conforto de saber que não estou sozinha

Como podemos estar sendo enganados de maneira tão sórdida? Quem está enchendo os bolsos com o desespero e infortúnio de pessoas inocentes que acreditam?

Não estou descrevendo a verdade de todos, quero deixar bem claro. Algumas pessoas se encontram bem na nova vida, velho mundo. Estou descrevendo a minha verdade sem querer desmerecer as pessoas que acham tudo maravilhoso. Mas gostaria que as pessoas que desejam vir aqui e arriscar estejam cientes da verdade, que tenham emprego seguro, preto no branco. Que tenham onde morar, que tenham segurança. Não desejo a ninguém, nem mesmo uma hora, do que vivi aqui.

Continuo na espera que alguma luz boa se acenda, que o brilho retorne aos olhos. Que o desânimo desapareça, afinal. Hoje é dia 12 de maio de 2004, quase um ano de sombra.

Busquei, e ainda busco, alguma coisa doce, leve e boa para a minha vida e para a dos meus filhos, porque acredito que possam ter ficado escondidas no chapéu de um mago velho e desiludido. Sonho ou desejo que minhas palavras cheguem ao alto, e que centenas de mãos postas em prece enlacem as asas da memória. Queria esquecer, não pensar, não sofrer, não tremer de medo a cada manhã quando o novo dia desperta para essa vida tão sem vida.

A solidão enlouquece? Talvez. Mas a humilhação sofrida nesse quase ano é coisa que não tem como tirar de dentro. Se a vida é tecida de palavras, se o mundo é um mundo de palavras, mudar de argumento é um risco de anular a linguagem. Queria falar de coisas lindas. Que a Itália ou o Vêneto, terra que sempre viveu nos meus sonhos, no meu trabalho, no meu dia-a-dia, é um lugar maravilhoso, gente boa e simples, que as gôndolas de Veneza são doces, calmas e deslizam tranqüilas nas águas da Sereníssima. Mas não é assim. 

Meu coração, acredito, era um gigante adormecido. E despertou impondo raciocínio em todos os sentidos. Certamente, me faz acreditar que a dor não é somente sofrimento, mas que o sofrimento é a certeza do meu persistir. A minha verdade continua sendo a minha verdade. Não por ser tão somente teimosa. Sei o quanto acreditei em coisas e pessoas nas quais não deveria ter acreditado. Sei também que eu não deveria multiplicar as sensações, pois a Sombra dentro de mim pode se tornar incontrolável. Mas escolhi não ser bruxa nem anjo. Escolhi ser o que sou, Sole, mesmo chama coberta de cinzas. Seria tão bom se o sonho ainda existisse e me presenteasse ar para poder respirar; se  pudéssemos